Sociedade Bíblica de Portugal

A música na Bíblia

Já ouviu falar da «parábola» de Elie Wiesel baseada na passagem de Génesis 28:10-12? Trata-se de uma alegoria contada pelo escritor judeu, sobrevivente dos campos de concentração e prémio Nobel da paz:

“Quando Jacob em fuga de Esaú, o irmão enganado, chegou a Betel teve uma visão: uma escada assentava na terra enquanto o topo alcançava o Céu, e os anjos de Deus subiam e desciam nela. Pois bem, no fim, os anjos esqueceram-se de retirar a escada e a escada ficou plantada na terra, e assim tornou-se a escala musical, cujas notas angélicas permitiam agora, a Deus descer e falar-nos e a nós, ascender ao céu para o alcançar.”

Foi com esta referência literária que a Prof. Doutora Elisa Bessa iniciou a sua comunicação na V Jornada: A Bíblia de Almeida, no ano passado, em Braga, sob o tema “A Música na Bíblia”.

“É certo que não foi assim que surgiram as notas musicais”, salientou a palestrante, mas, esta alegoria de uma “escala musical que nos eleva o espírito e nos leva ao alto, acaba por revelar “o laço existente entre a música e a fé, e como essa ligação se tornou uma constante para a experiência artística e religiosa”.

A investigadora da Universidade do Minho começou por apontar que, no Antigo Testamento, encontramos a referência a Jubal – o pai dos instrumentos musicais (Génesis 4:21), como a harpa e a flauta, e em Êxodo 19:19, é-nos apresentado um outro instrumento: a trombeta ou “o Shofar, feito do chifre de um animal”.

Ao ler as referências musicais do Antigo Testamento, percebemos que “a música tem o propósito de exaltar a história humana, revelando os atos divinos: a salvação e o juízo de Deus, no interior das vicissitudes humanas”.  Segundo a palestrante, “na Bíblia encontramos: Cantos de guerra – o cântico de Moisés (Êxodo 15); cantos fúnebres - aquando da morte de Saúl e Jónatas (2 Samuel 1:19-27); em Isaías 5 lemos a canção do agricultor sobre a vinha; lemos cânticos nupciais no livro Cântico dos Cânticos, e até o canto da velha prostituta, em Ezequiel 23:32-35.”

Naturalmente, não é possível falar de música na Bíblia sem referir o Rei David, que nas várias confissões cristãs é tido como “um instrumentista com reconhecidos poderes curativos – e assim nasceu o princípio da musicoterapia”, concluiu a autora.

Ler os instrumentos que compõem a orquestra presente no Salmo 150 é representativo da importância da música - a tal ligação entre a música e a fé, uma vez que “transfigura os gestos e atos mais simples, e confere uma qualidade estética ao canto litúrgico – cantar com arte (Salmos 32:3). A manifestação da fé deve conter harmonia e encanto (Salmos 96)”.

Mas, a Bíblia também demonstra a importância da música para os povos e as culturas do seu tempo. Como refere a Professora Elisa, vemos isso em Daniel 3:5, no pormenor da citação de todos os instrumentos na orquestra real, “no reinado de Nabucodonosor, da Babilónia: cordas, sopro e percussão, para o momento de adoração à estátua, mas, também o silêncio”, a pausa – talvez o mais elevado momento de devoção. Sobre esta relação entre a música e a Bíblia, nomeadamente o que está para além das referências explicitas, fazemos aqui um parêntesis para relevar o que disse o Prof. Doutor Luís Menezes: o próprio ritmo e rima das palavras revelam musicalidade. Segundo este investigador da Universidade de Coimbra, trata-se de uma realidade que se observa facilmente na tradução de Almeida. Numa época e num lugar em que a maioria das pessoas não sabiam ler, o nosso tradutor apresentou uma obra para ser, em primeiro lugar, lida em voz alta entre os falantes de língua portuguesa.

De volta à reflexão da Professora Elisa é importante reconhecer, no Novo Testamento, a pessoa de Jesus como a figura central na justificação pela fé: o Messias - descendente do rei David, um pormenor que, “confere à produção poética e musical de David o seu cunho profético”.  Segundo ela, os Salmos foram não apenas o repertório musical de Jerusalém até ao ano 70 d. C (data da sua destruição), como vieram a constituir “o mais importante núcleo textual do repertório cristão, associado à Igreja primitiva”. No entanto, como salienta a investigadora, há um forte contraste entre a música no Antigo e Novo no Testamentos. Neste último não há referência ao uso da música instrumental na adoração e nos atos de louvor. A passagem de Paulo e Silas que, à meia-noite, oravam e cantavam hinos a Deus, na prisão (Atos 16:25) , reforça esta mudança: orar e “cantar louvores a Deus com o espírito e também com o entendimento” (1 Coríntios 14:15). Todavia, conforme esclarece: “Não quer dizer que no Novo Testamento não existissem instrumentos, mas, a sua ocorrência não é tão preminente, estando ausente do livro dos Atos dos Apóstolos, à exceção deste episódio”.

No entanto, em Apocalipse 5, lemos acerca de um «culto» celestial que, como a palestrante refere, “nos apresenta um quadro musical exuberante, a apresentação escatológica daqueles que foram redimidos, adorando a Deus com música, com harpas na mão, (referência ao rei David), e o som de um cântico que envolve toda a criação” adorando a Deus.

Podíamos viver sem música, mas, certamente não era a mesma coisa, concluiu a palestrante. A seu ver a capacidade para a música é uma dádiva de um Deus criador e criativo: ajuda-nos a expressar as mais diversas emoções, e é um auxílio inquestionável à memorização (desde a tabuada, aos versículos da Bíblia). Entender o contexto da música, quando lemos a Bíblia dá-nos, segundo ela, uma “visão de aproximação ao criador”.

A professora Elisa, terminou a sua comunicação com uma citação de Cassiodoro, escritor cristão do Séc. IV que, segundo ela, “deixou-nos uma advertência: ‘Se continuarmos a cometer injustiças, Deus deixar-nos-á sem música’”.

Talvez Deus não nos retire a capacidade para a música, mas, certamente, que a injustiça e a opressão, retiram de nós a capacidade para a apreciar…

Sociedade Bíblica de Portugalv.4.24.4
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